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Dia Mundial da Conscientização do Autismo: Conscientizar para Modificar

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O dia 2 de abril foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Conscientizar nada mais é do que o processo de obter informações ou fazer com que outro indivíduo a obtenha.

Muitos são os mitos que foram sendo estabelecidos sobre o Transtorno do Espectro Autista ao longo dos anos. Sobre a etiologia do autismo tornaram-se conhecidos os mitos de que a vacina tríplice viral causa o transtorno, surgido em uma pesquisa de Andrew Wakefield de 1998, já desacreditada, e o da mãe geladeira por Kanner, surgido em 1940, segundo o qual mãe pouco amorosas produziriam autismo nos filhos. 

Outros mitos, igualmente perigosos, estão associados à promessa de intervenção e cura, como os que preconizam dietas e tratamento alternativos. O perigo destas formas de tratamento não é somente a sua ineficácia fazendo com que o indivíduo perca tempo de intervenção efetiva e preciosa, mas também os seus malefícios. É o caso da administração do MMS, dióxido de sódio, que é corrosivo e pode causar danos e problemas respiratórios, propagado pelos trabalhos do bispo Jim Humble e popularizado em 2016 a partir do livro de Kerri Rivera. 

Logo se vê que informar torna-se uma das etapas mais importante de processo de modificação da nossa sociedade para acolhimento destes indivíduos, tornando essa data uma ótima oportunidade para ampliar a divulgação acerca de informações confiáveis sobre o TEA. 

A verdade é que as possíveis causas do autismo não são completamente conhecidas, sendo que o único consenso entre os pesquisadores da área é o papel preponderante de variáveis hereditárias. Os próprios critérios que subsidiaram o diagnóstico de autismo passaram por modificações ao longo dos anos e foram descritos nos manuais de classificação, como CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) e DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). 

O autismo passou da classificação enquanto “perturbação esquizofrênica” em 1950 (CID-6), sendo retirado da concepção de doença em 1980 (DSM-III), passando a ser encarado como desordem, até ser designado como “transtorno do espectro autista”, conforme conhecemos atualmente (DSM-V, 2013). Espectro que varia em níveis de gravidade, com base na funcionalidade. Os critérios diagnósticos atuais se baseiam em dois eixos, o da comunicação e interação social, e o eixo de padrões restritos e repetitivos de comportamento.

 Retomando os mitos supracitados que ainda ressoam atualmente, desde 1980 já não se poderia falar em cura como preconizam formas alternativas de “tratamento” citadas anteriormente, já que autismo não se trata de uma doença. A boa notícia é que podemos dizer que o termo espectro, além da noção de um continuum de funcionalidade, traz também a expectativa de que com o devido tratamento esse indivíduo possa se mover ao longo da classificação, uma vez que tem a possibilidade de adquirir mais funcionalidade através da intervenção. E por tratamento devido queremos dizer intervenções com evidências científicas já conhecidas, como é o caso da ABA (Applied Behavior Analysis), que desde o estudo de Lovaas (1987) tem acumulado resultados de pesquisa que comprovam a sua eficácia na intervenção com indivíduos com TEA.

Com o aprimoramento dos critérios diagnósticos, busca pela informação e cada vez mais evidências científicas sendo acumuladas no tratamento do autismo, ampliam-se as possibilidades para cada indivíduo no espectro, sendo dois os principais focos: 1) a possibilidade de que com o devido tratamento pode-se aumentar a chance de qualidade de vida para esse indivíduo e maior desenvolvimento de sua funcionalidade fazendo com que ele próprio atue sobre seu ambiente com o máximo de independência possível e 2) a possibilidade de que pelas vias legais esse indivíduo tenham garantidos seus direitos e que novos direitos sejam cada vez mais previstos na legislação.

Já se sabe que algumas conquistas legais já foram concretizadas como as previstas na Lei Berenice Piana (12.764/12) que, além de determinar o direito dos autistas ao diagnóstico precoce, tratamento, terapias, e o acesso à educação, também inclui as pessoas com TEA nas leis específicas das pessoas com deficiência. Além de outras leis mais específicas que garantem redução de jornada de trabalho para servidores públicos com filhos autistas (13.370/2016), direito à educação especial e atendimento educacional especializado (7.611/2011), prioridade de atendimento (10.048/2000), entre outras.

Embora as conquistas especificadas sejam de extrema importância e precisam ser comemoradas, na prática, as famílias de pessoas com TEA seguem na luta diária para ter seus direitos de fato garantidos. Tratamento e educação de qualidade e com critérios baseados em evidência científica ainda não são uma realidade para todos. Com tristeza não é incomum sabermos de famílias que, apesar de conseguirem o diagnóstico precoce, este não resultou em intervenção precoce, sabidamente importante para um bom prognóstico. Com tristeza sabemos que devido à falta de informação sobre práticas baseadas em evidências, temos notícias de famílias que gastaram tempo com “tratamentos” sem eficácia e, por vezes, prejudiciais. Com tristeza, em pleno século XXI, também temos notícia de indivíduos que passam por situações de terem seus direitos negados em espaços facilmente frequentados por neurotípicos. 

Nosso desejo é que na ocasião da presente data, possamos endossar a necessidade de encarar juntos essa luta que ainda está longe de acabar, de mãos dadas, e buscando com que todos os indivíduos possam ter acesso a não menos do que precisam e merecem.

 

 

Referências:

 

Associação Psiquiátrica Americana. (2013). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5 ª ed .). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

 

Autismo e Realidade. Convivendo com TEA: leis e direitos. Disponível em https://autismoerealidade.org.br/convivendo-com-o-tea/leis-e-direitos/. Acesso em 21 de mar. 2021.

 

Barboza, R.; Martorano, S. (2017). O caso da vacina tríplice e o autismo: o que os erros nos ensinam sobre os aspectos na natureza e ciência. Em Moura, B. A e Forato, T. C. M. Histórias das ciências, epistemologia, gênero e arte: ensaios para a formação de professores. São Bernardo dos Campo, SP: editora UFABC.

 

BRASIL, Lei nº 12.764 de 27 de dezembro de 2012. Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro Autista. Presidência da República, Casa Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em 21 de mar.  2021.

 

Fadda, G. M.; Cury, V. E. (2016). O enigma do autismo: contribuições sobre a etiologia do transtorno. Psicologia em Estudo, 21 (3), 411-423.

 

Fernandes, C. S.; Tomazelli, J.;Girianelli, V. R. (2020). Diagnóstico de autismo no século XXI: evolução dos domínios nas categorizações nosológicas. Psicologia USP, 31, p. 1-10.

 

Lovaas, O. I. (1987). Behavioral treatment and normal educational and intellectual functioning in young autistic children. Journal of Consulting and Clinical Psychology55(1), 3-9

 

Oliveira, T; Quinan, R. Toth, J. (2020). Antivacina, fosfoetanolamina e mineral miracle solution (MMS): mapeamento de fake sciences ligadas à saúde no facebook. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, 14, 91-111.